quarta-feira, março 08, 2006

Eliseu Pinto

Que bem que me lembro do Eliseu Pinto, esse velho pintor de aspecto bonacheirão...

Eliseu Pinto era acima de tudo, um artista! Das tintas, tudo fazia. Tanto lhe interessava se pura e simplesmente pintava de branco as paredes, ou se inspirado no que fosse, pintava extraordinários quadros de bonitas paisagens ou de esbeltas mulheres nuas e seminuas. Gostava de cores e de formas, e sobretudo de dar cor às formas, desenhá-las e pintá-las, dando alma a coisas sem vida e dando vida a coisas sem alma.

Certo dia, o Jacinto Glória, presidente da junta cá da nossa freguesia, resolveu que era altura de repintar o interior da igreja desta nossa pacata terra. A ideia era transformar o ambiente menos pesado, uma vez que as pinturas existentes na altura, retractavam um Cristo sofredor agarrado à cruz com a ajuda de uns pregos, meia dúzia de fieis ajoelhados perante uma santa com um ar triste, e um homem arrastando-se por qualquer motivo dito divino. O padre Salomão de Deus concordou com a ideia do então presidente da junta e logo trataram de falar ao Eliseu. Explicaram ao pintor que a ideia era transmitir um ambiente harmonioso aos fieis, pintando algo que desse um ar menos pesado à igreja da terra, deixando o resto a seu critério, confiando-lhe a responsabilidade de ser ele a aplicar as suas ideias e por conseguinte contribuir com toda a sua arte.
Durante dezoito dias, a igreja teve fechada somente para o Eliseu. Por dois domingos seguidos, a missa foi dada no anfiteatro recém construído cá na terra. Durante esse tempo, as pessoas perguntavam-se curiosas, sobre o que estaria Eliseu Pinto a pintar na igreja. Mas para o que ninguém tinha resposta, a dita só surgiu após esses dezoito dias de espera e ansiedade.
O padre Salomão de Deus organizou uma festa para o povo, na qual se abririam as portas da igreja e se viria pela primeira vez, o trabalho de Eliseu Pinto. Nem o próprio padre tinha visto ainda a obra do pintor. À hora marcada, o padre abriu então as portas gigantes que davam para o interior da velha igreja, agora modernizada. As pessoas começaram a entrar e a admirar o árduo trabalho do artista Eliseu. Primeiro, ficaram boquiabertas com a perfeição da imagem de uma santa com um ar alegre, abraçada a pessoas do povo... Depois, consoante iam avançando, surgiam pinturas de pombas brancas, transmitindo harmonia e paz aos crentes que usufruíam das instalações da igreja de Terranova. Todos pareciam rejubilar-se com o novo espírito harmonioso da igreja, até que se depararam com uma imagem algo duvidosa, precisamente no lugar aonde antes estava a pesada imagem do sofredor Cristo na cruz... Esta nova imagem pintada por Eliseu Pinto, mostrava um tipo com feições médio-orientais subido aos céus, falando aos seus crentes.
- O que representa isto? – Ouviu-se entre as vozes do povo, nesse dia sem igual em que toda a população se apresentou em massa na igreja, a fim de conferir o trabalho do artista Eliseu Pinto.
- Representa Jesus, no dia da sua ressurreição, três dias depois de... – Explicava Eliseu, quando foi interrompido por Oscar Alho, um habitante polémico e maldizente, engenheiro de confusões e alaridos:
- Mas Jesus não é preto! Este tipo está doido...
O alarido foi total, e todos pareciam esquecer-se que estavam numa igreja...
- Mas o homem não é preto, é somente um pouco mais escuro do que nós por se tratar de um oriundo do médio oriente. Não faz sentido, que alguém nascido em Jerusalém seja um tipo muito branquinho e de olhos claros... As feições de Jesus eram necessariamente viradas para o Árabe. – Tentava explicar Eliseu, sem que ninguém o ouvisse realmente com atenção.
- Que decepção! - Exclamou a profundamente religiosa Lídia Neta, referindo-se ao trabalho de Eliseu Pinto.
A opinião de Lídia generalizou-se e todos com excepção do padre Salomão de Deus, pareciam esquecer o fascínio sentido ao entrarem na igreja. Até o senhor Duarte, dono do Museu Du’Arte, ficou deveras decepcionado com tamanha falta de sensibilidade do seu principal colaborador. Ouviram-se inúmeros protestos e até a Dona Débora Amilcar Alho, a esposa brasileira do polémico Oscar Alho deu a sua opinião, exclamando que ‘foi pior a ementa que o cimento’. Coitada de Dona Débora que jamais tinha feito a emenda de um soneto, obrigada que tinha sido toda a vida, a instruir-se no meio das barracas de uma favela carioca.
Não querendo alimentar polémicas na própria casa de Deus, o próprio padre se encarregou de, uma semana depois, contratar um pintor da cidade com o fim de repintar a igreja. A missa continuou a ser rezada no anfiteatro por mais quatro domingos.
Passados esses quatro domingos, o trabalho do pintor citadino pode então ser fiscalizado pelo povo, em mais uma festa organizada pelo padre de Terranova. Entre o povo, a opinião geral foi de que as pinturas podiam não ter a mesma arte e beleza que as de Eliseu, mas eram certamente, mais adequadas...
O Cristo branquinho e de olhos claros, voltou finalmente à cruz de onde tinha sido libertado por uns dias. Desta vez, pelas mãos do próprio povo que dizia ser-lhe fiel.

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