quarta-feira, março 08, 2006

O Patife

- Por onde andará o patife?

Lídia calculava que andava galdéria nova no pé de Mário. Fazia quase um mês, precisamente vinte e nove dias, talvez perto de umas setecentas horas, que Mário Neta inventara aquela primeira mentira desde que trabalhava na ‘Paraíso Electrónica’.

- Vou chegar mais tarde a casa por causa de uma reunião de última hora. Não contes comigo para jantar. – Disse com um nervoso miudinho a denunciar-se-lhe na voz ao telefone.

Desde então, dia sim, dois dias não, eram dias de reuniões de última hora, pelos motivos mais bizarros que envolvem os compromissos laborais. A partir de uma certa altura, até o nervoso miudinho se matou na voz agora segura, do ingénuo engenheiro.

- Tão ingénuo, o coitado... Pensando ele que eu nem desconfio de nada, convencido que está de que é um grande artista e que só não está a fazer teatro num dos grandes palcos deste país, pela falta de oportunidades evidente que a cultura proporcionou aos tipos da sua geração. – Pensava Lídia.

Nem tudo tinha sido mau, quanto à mudança de Mário Neta para a ‘Paraíso Electrónica’, cargo de subdirector oferecido pelo prestígio conseguido como chefe da secção de contabilidade da ‘Worldatrónic’, empresa multinacional para a qual trabalhava até bem pouco tempo antes... Até um tal de Doutor Figueiredo engraçar com o seu intelecto e com a sua capacidade de liderança e oferecer-lhe de mão beijada o tal alto cargo na ‘Paraíso Electrónica’, “aonde”, dizia o slogan, “o paraíso pode ser tecnologicamente evoluído”. A princípio, foi óptimo o facto de ir ganhar quinze vezes mais do que auferia na ‘Worldatrónic’, “aonde”, dizia o slogan “o seu mundo tem mais luz”. Com mais dinheiro veio mais liberdade... A liberdade de poder escolher entre o que se quer roubar à montra da loja da baixa da cidade e o que se quer lá deixar. A liberdade de poder escolher entre uma casa cara na avenida principal de Terranova ou uma casa cara no sítio mais sossegado cá da nossa terra. A liberdade de poder escolher entre comprar a televisão grande de ecrã plasma, comprar a televisão grande de ecrã normal, ou comprar as duas, uma para a sala de estar e a outra para a sala de jantar.

- Ter dinheiro é óptimo quando significa ter liberdade... Liberdade de se poder escolher. Quando se trata de ter poder, é mau... Sobe-nos à cabeça. Foi o que aconteceu àquele desgraçado! Com o tempo esqueceu-se de onde veio, sentiu-se poderoso e com dinheiro para comprar tudo e todos, e vai ele lançado, passando por cima dos sentimentos de toda a gente, incluindo dos meus, a mulher que à cinco anos prometeu amar para toda a vida, nos bons e nos maus momentos. Mentiroso... Desgraçado!!!

Lídia perdia-se em lágrimas, desesperada por não saber das andanças de seu marido, quando este entrou em casa com um largo sorriso de orelha a orelha, em antítese ao rosto apresentado pela pobre mulher.

- Trago óptimas notícias, Lídia. – Gritou alegremente como quem canta alto, sem reparar sequer, nas lágrimas que nasciam no abismo sentimental chamado Lídia.

- Conta-mas então... – Rematou Lídia, disfarçando as lágrimas e os soluços.

- A verdade meu amor, é que não tenho andado em reuniões de última hora, coisa nenhuma.

- Então?

- Lembras-te do meu sonho em ser actor?

- Sim!

- Pois bem... Faz quase um mês que abriu um casting para novos actores, na cidade. Todas as terças e sextas havia uma nova prova a passar pelos candidatos aos lugares... Hoje foi a última prova e só ficamos três para o fim. Eu ainda não te tinha dito nada porque queria fazer-te uma surpresa se conseguisse. E consegui... Se tudo correr bem, dedicarei a minha vida a este sonho e deixarei o cargo na ‘Paraíso Electrónica’. Claro que vou ganhar menos, mas o dinheiro não é tudo... Não achas, meu amor?

- Claro, Mário... O dinheiro não é tudo!

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