quarta-feira, março 08, 2006

Viagem

A custo, abro os olhos lentamente. Na mesa-de-cabeceira a luz vermelha que emana do rádio despertador marca três e quarenta e cinco. 345 de uma madrugada mais fria que as anteriores neste início de primavera. Os meus braços adiantam o destapar do meu corpo antes que o próprio cérebro avance com o raciocínio. Num movimento pausado – parece que em câmara lenta – levanto-me do leito que me acolhe as noites e dirijo-me quase como que flutuando sobre uma camada estranhamente maleável onde os meus pés assentam, para a casa de banho que fica ao fundo de um corredor que hoje parece mais longo que ontem. Ao chegar, não levo a mão ao interruptor mas mesmo assim a luz acende-se como se de magia se tratasse. A minha mente parece não demonstrar qualquer estranheza pelo ocorrido e o meu corpo avança seguro até ao lavatório. Desta vez, as mãos executam o movimento próprio que me permite abrir a torneira, mas para minha surpresa, nem uma gota de água se precipita sobre o mármore. Por instantes, o meu olhar fixa-se sobre o espaço exacto onde a água devia estar a correr. Pela primeira vez, a estranheza começa a ganhar algum espaço no abismo que a minha mente se tornou. Fecho os olhos por um curto milésimo de segundo e quando volto a abri-los tenho a certeza de que estou a contemplar o espelho que se encontra por cima do lavatório. O bater do meu coração parece agora bombear toneladas de sangue sobre as artérias do meu corpo assustado pela ausência de imagem do outro lado do espelho. Eu não estou lá! Sei que estou aqui deste lado mas não existo no reflexo. O espelho mostra-me os objectos que comigo dividem este espaço mas eu não estou lá. Através do espelho, consigo ver perfeitamente o cortinado que se encontra nas minhas costas, como se o feixe do reflexo me atravessasse o corpo sem se dar conta da minha existência. O coração parece agora querer explodir, as artérias parecem querer rebentar, os olhos incham com as lágrimas que o medo desabou sobre a minha alma perdida e uma dor imensa toma-me o corpo como sua morada e intensifica-se a cada momento, a cada segundo que passa. Quando aparento não aguentar mais tanta dor e tanta dúvida, eis que apareço de novo no quarto, renovado, com uma calma que até a mim me causa uma certa estranheza, pairando a dois metros de distância do meu corpo sobre a cama, levitando sobre este, olhando-o com a curiosidade de quem repara em algo que ainda não conhece, com o olhar atento de que vê algo que nunca viu. Lá em baixo, pareço estar a dormir profundamente, em paz comigo e com o Universo, pouco preocupado com as adversidades da vida, num sono que transpira segurança e orgulho no que já foi feito. Gosto daquela aparente segurança e tento chegar mais perto de mim mesmo. Aproximo-me com um certo custo e tento agarrar a mão esquerda que descansa sobre os lençóis. No momento em que a consigo agarrar, entro numa espécie de abismo que me leva por um túnel aparentemente infinito e do qual brotam memórias insignificantes, luzes fortes e estranhas e músicas que não me lembro de ter ouvido em lugar nenhum. Na realidade, o precipício dura um milésimo de segundo apenas, mas parece durar uma eternidade, como se tudo o que conhecemos acerca da teia do espaço e do tempo perdesse todo o sentido naquele momento. De súbito, o precipício acabou e o meu corpo estremece sobre a cama. As minhas pálpebras parecem estar pesadas. A custo, abro os olhos lentamente. Na mesa-de-cabeceira a luz vermelha que emana do rádio despertador marca três e quarenta e cinco. 345 de uma madrugada mais fria que as anteriores neste início de primavera.

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